Capítulo
I: A casa
A
casa era grande e demasiadamente velha, a pintura desbotada, e
algumas madeiras davam a impressão de que poderiam cair a qualquer
momento, ficava perto de um velho pântano, de onde se podia ouvir o
coaxar dos sapos, de um lado uma plantação de milho e do outro um
jardim colorido com as mais diversas plantas e flores. Era poético
de ser ver, tinha uma beleza exótica, lá vivia a velha Emília, ela
contava pouco mais de 70 anos, ali nasceu, cresceu, casou, procriou,
os filhos foram embora, o marido faleceu e lá, ela permaneceu. A
vida em outras épocas já fora mais animada, ah, lembrava ela
sentada na cadeira de balanço que rangia na velha área de madeira.
Capítulo
II: A infância
A
infância, os irmãos, os pais, aqueles almoços de domingo, a mãe
assando os pães no forno de barro que havia nos fundos da casa,
aqueles dias de calor e vento, e as roupas balançando no enorme
varal, que, necessário devido ao número de moradores. Dos 6 irmãos,
Emília fora a última a se casa. Os outros foram um a um partindo,
sem olhar para trás, e raramente apareciam, em especial vinham em
algumas datas comemorativas, traziam seus filhos e era aquela festa,
a criançada no balanço da figueira, correndo atrás dos patos,
andando a cavalo, jogavam laranjas para Gaspar, o cão fiel e amoroso
da família. O dia findava e eles retornavam a suas vidas, a seus
lares e a monotonia seguia calmamente como um rio manso.
Emília
era a caçula, e fazia questão de ficar e tomar conta dos pais que
iam rapidamente envelhecendo.
Capítulo
III: as memórias
Era
um hábito dela sentar-se na cadeira de balanço e recordar o
passado, por vezes entrava, ia até um dos quartos, pegava as caixas
com fotografias e revivia os momentos como se fizessem parte do
presente. Emília guardava em sua ainda saudável memória todos os
momentos vividos ali.
Capítulo
IV: Solidão ou solitude?
Não
há como dizer se ela era feliz sozinha, ou se sentia falta da
família, de amigos ou vizinhos. Os últimos só eram encontrados com
pelo menos 10 quilômetros de distância. Ali era uma região de
fazendas, onde muitas delas foram herdadas e abandonadas, ou seus
proprietários as desativavam e as casas iam ruindo com o passar dos
anos.
Emília
sempre teve muito apego àquele lugar, foi ali que viveu toda a sua
vida. Não conhecia outras realidades, tampouco se interessava em
conhecer. Ali era o seu mundo, o seu paraíso perfeito. Uma vez por
mês tomava o trem que passava numa estação das proximidades, ia
até a cidade, e depois de tudo resolvido retornava.
Assim
sempre fora, é e será. Os filhos não a visitavam com muita
frequência. Dos 4, o caçula ainda era o que mais vinha visitar a
mãe.
Ficava
muito contente quando os filhos vinham, e com eles, os netinhos,
todos ainda crianças, alegravam a velha casa, traziam vida, corriam
no jardim, colhiam cenouras frescas na horta, e a vovó os esperava
com biscoitos e outras guloseimas coisas que em geral crianças
adoram.
Capítulo
V: A lucidez e boa disposição
Os
filhos ficavam impressionados quando apareciam ao ver que, apesar da
decadência da casa, a mãe mantinha tudo como fora no passado, a
limpeza, os vasos de flores espalhados nos cômodos da casa, o jardim
sempre vivo e colorido, a horta cheia de legumes e hortaliças, e
ainda cultivava o milho, isso não era para qualquer um, a velha era
realmente forte. Sempre muito feminina e delicada, com seus adoráveis
vestidos florais, um aventalzinho de cor, um chapéu de palha na
cabeça, afinal, como a lida era no campo tinha que se proteger do
sol ardente, em geral a região era sempre mais gélida e úmida, mas
nos verões por vezes, os dias eram escaldantes a ponto de derreter
picolé em minutos.
Capítulo
VI: O amor e respeito para com todos os animais
Emília
tinha algumas vacas, de onde usufruía somente o leite, eram 3 ou 4
vaquinhas, cada uma com um nome próprio, a velha conversava com elas
enquanto carinhosamente tirava-lhes o leite. As poucas galinhas
viviam soltas a catar bichinhos, delas, somente os ovos, como estas
vaquinhas e galinhas eram felizes, soltas, vistas e tratadas por
Emília como seres vivos, não meros objetos “cultivados” rumo a
carnificina. Aliás, peculiar, muito peculiar, visto que as fazendas
das redondezas criavam gado para o abate, porcos e galinhas também
tinham o mesmo fim.
Emília
amava e respeitava muitos os seus animais e acreditava que eles
mereciam o mesmo tratamento que qualquer outro ser vivo.
Capítulo
VII: Os bichanos
E
o que falar dos gatos da velha, Perdia-se a conta ao ver no final do
dia aquela quantidade de bichanos, todos em volta esperando o leite
fresco das vacas. Devia passar dos 20, eram muitos, e assim como
Emília, não comiam carne, comiam o mesmo que ela e adoravam leite.
Quando um animal adoecia, Emília tinha de pegar o trem e ir até a
cidade chamar o veterinário, que vinha imediatamente reparar os
animais doentes.
E
assim vivam em harmonia, o meio ambiente, tudo que ali habitava,
vivia bem, com qualidade de vida e a paz reinava.
Estes
eram os verdadeiros companheiros, os que sentavam no colo enquanto
tricotava u lia algo, espalhavam-se pelos cômodos, esticavam-se a
tirar longas sonecas nos sofás da casa, dormia com a velhota na
cama, e aí sem um ficasse para o lado de fora do quarto, miavam até
que Emília abrisse a porta.
Emília
os cumprimentava pela manhã com um bom dia e um afago na cabeça,
quando ia rumo ao milharal plantar ou colher os milhos, aquela linda
e adorável de gatos a acompanhavam alegremente, esfregando suas
caudas em seu vestido, por vezes Emília tinha que lhes chamar a
atenção, pois a acariciavam tanto que acabavam por atrapalhar o
trabalho.
Quando
ia para o jardim, o mesmo acontecia, se esfregavam e cheiravam as
flores, quando ela retornava para dentro de casa eles a seguiam
rapidamente, como que, como medo de perdê-la de vista.
Capítulo
VIII: A viuvez
O
velho falecido morrera já há 10 anos, adquirira tuberculose, sabe
como é, se sentia um garotão, não cuidava da saúde, em épocas de
frio, com a umidade e as chuvas, vestia-se em poucos trajes, Emília
sempre o alertava, mas o velho não lhe dava ouvidos, pensava que
nunca ia adoecer, muito menos morrer, pensava ele que seria eterno.
Fora
um choque para a família, tudo acontecera tão rapidamente, que não
nem tempo de levar o velho ao hospital, fazer exames e internar para
um tratamento. Até hoje Emília pensava, se o velho não fosse tão
teimoso ainda estaria vivo. Mas, com o tempo tudo se cura, as feridas
se fecham e a vida segue, rumando para lá e para cá. Como ela
própria dizia, viver é navegar em um rio onde não se pode medir a
profundeza, não tem como saber sem virá uma tempestade de surpresa,
ou se podemos ser atacados por selvagens canibais, ela assim se
referia à vida como uma caixinha melindrosa e misteriosa.
Capítulo
IX: Os rebentos
Emília
apesar do pouco contato com a prole, os amava muito e era
demasiadamente feliz com os filhos.
Dos
4 filhos, 2 deles viviam muito distante, poderia se dizer que do
outro lado do país e os outros 2 não tão distantes, porém nem tão
perto, o caçula, que era o que mais aparecia, morava a
aproximadamente 500 quilômetros. E até mesmo este custava a dar as
caras.
De
vez em quando, uma correspondência daqui, dali, ela ficava toda
feliz e respondia no mesmo dia. A relação mãe e filhos era boa,
porém sem muito contato físico, visto que ada um casara, formara
família e abandonara a vida no pequeno vilarejo.
Capítulo
X: O natal, última reunião em família
No
dia 24 de dezembro daquele ano, os filhos da velha prepararam uma boa
surpresa para a mãe, combinaram entre si que todos apareceriam na
noite de natal, e assim foi.
Contava
pouco depois das 17 horas, Emília como de costume, tirara o leite
das vacas, alimentara os gatos, fora até a horta pegar algumas
hortaliças e entrara para tomar um banho, naquela noite estrava um
tanto frio, e ela não queria correr o risco de pegar um resfriado.
Banhou-se
e fez um fogo na lareira, e começara preparar a ceia, pôs à mesa
pães, uma deliciosa sopa de vegetais e abrira uma garrafa de vinho,
fora até a sala e acenderá as luzes da árvore natalina, que era
sagrada, passasse sozinha ou em companhia sempre a montava.
Quando
saiu à área para ligar as luzes coloridas que contornavam o oitão
da casa, vira um carro chegando, olhou atenta e esperou o carro se
aproximar, dele desembarcaram o caçula, a esposa e o neto de 4 anos.
Correu e os abraçou saudosamente, convidando-os para entrar, pensou
ela que só havia preparado uma sopa de legumes, mas daria um jeito
de agradá-los. Emília era esperta e ágil, logo logo prepararia um
jantar especial. O filho alertou-a de que não se preocupasse, pois
havia trazido alimento para a ceia.
Entraram,
levaram as malas até o quarto dos fundos, o garoto fora correr lá
fora, rumo ao balanço da centenária figueira e os pais assim que
levaram as malas para o quarto, voltaram para o quarto e pegaram a
comida ara a ceia, para a surpresa de Emília trouxeram uma grande
variedade de saladas e um peru assado. Tudo bem, matutara ela, eles
vêm tão pouco e não é porque não me alimento de cadáveres que
eles não podem usufruir o mesmo.
Logo
em seguida mais 2 carros, a velha saíra para fora, eram os 2 filhos
do meio com suas esposas e a filha de um dos casais. Todos se
abraçaram alegremente e foram entrando, a mãe disse que um dos
casais poderia se instalar no quarto ao lado do corredor e o outro
no quarto do sótão.
A
netinha com pouco mais da idade do neto do caçula tinha 7 anos,
depois de dar um apertado abraço na avó fora ao balanço com o
primo mais novo.
A
mãe preocupada com a comida, se ia alimentar a todos, começara um
refogado com todo o tipo de legumes, foi quando um dos filhos disse
que haviam trazido comida, e foram desempacotando uma parte de um
porco assado, arroz colorido e vinhos. Que fazer pensou ela, ao menos
fome não irão passar.
Passados
1 hora, por volta das 20 horas, o quarto filho chegou sozinho, a mãe
não sabia se ficara mais surpresa pela reunião de todos os filhos
ou pelo filho ter chegado sozinho. Sem alardes desceu do carro
trazendo a sobremesa na mão, era uma torta de maçãs, e com o
passar do tempo, a mãe sem investigar deixou que o filho contasse o
que havia acontecido com a esposa, pois chegara só, algo incomum,
visto que costumavam viajar sempre juntos.
Pouco
antes do jantar ele falou do divórcio, que surpreendera a todos e
mantiveram-se discretos, respeitando-o.
Depois
do jantar, todos se dirigiram à espaçosa sala, bebiam vinho,
conversavam e riam, as crianças brincavam com os felinos, já de
madrugada cada um foi se dirigindo aos aposentos.
Na
manhã seguinte Emília os aguardava com a mesa farta para o café da
manhã, ah, que momento especial e feliz pensava ela. Levantaram
tarde, tomaram o café, uma manhã agradável, depois foram tomar sol
e caminhar por entre o milho e o jardim. Fizeram questão de elogiar
a boa disposição e cuidados da mãe para com tudo.
Antes
do almoço, todos foram arrumando as malas e partindo, ficara a
alegria, as lembranças e o doce vazio da partida da pequena família.
Mas
a vida é assim mesmo falava ela sozinha, há a hora de chegar, de
permanecer e partir.
Capítulo
XI: A saudade
Emília,
como nunca antes havia sentido esta sensação de saudade, de perca,
de ausência, naquela manhã em especial sentira-se triste e
solitária, a velha era forte e fora vista poucas vezes chorando, mas
aquela manhã era diferente, nem ela sabia explicar o que tomava
conta de si. Sentou-se na cadeira de balanço, as lágrimas escorriam
e ela as secava com o avental.
Depois
de um longo tempo, ali, intacta, levantara-se e fora tomar um banho.
As
horas foram passando e Emília não saia do banheiro, algo poderia
ter acontecido, poderia ter passado mal, desmaiado ou adormecido na
banheira com água quentinha. Talvez fosse o desejo dela permanecer
lá por bastante tempo, como uma forma de dar leveza na alma. Porém,
aquela situação fugia do habitual.
Capítulo
XII:
Durante
a madrugada Emília saíra atônita e confusa do banheiro, parecia
ter perdido os sentidos, com os olhos embaçados caminhara lentamente
e meio cambaleando até o quarto, secou-se e vestira um pijama,
deitara-se lentamente na cama, cobriu-se com cobertas quentes e
adormecera.
A
porta ficara semiaberta e rangendo a cada gato que adentrava ao
aposento, aos poucos, todos os seus felinos entraram e foram se
acomodando ao lado da velha, todos dormiam um sono inabalável.
Capítulo
XIII: A morte e o canibalismo
Aquela
era a cena mais bela que se podia dizer, se não fosse o fatídico e
aterrorizante acontecimento que assombrou aquele casarão.
Aproximadamente
1 mês depois do natal, o filho mais velho de Emília veio até a
casa da mãe a fim de passar uns tempos e dar paz à mente, visto que
havia passado por um momento doloroso, o divórcio, ali parecia um
bom lugar para acalantar o coração junto com a mãe e toda a
natureza que a cerca.
Chegou,
e encontrou as lâmpadas de natal ligadas, isto já passados quase 30
dias das festas natalinas, a porta e janelas fechadas. Bateu e não
fora recebido por ninguém, pensara ele se talvez a mãe tivesse
viajado, ou id o à cidade, mas as luzes coloridas o preocuparam. Foi
quando arrombou a porta e por suas narinas foram invadidas por um
terrível cheiro, aquilo cheira podre, o aroma era de morte. Com
certo receio fora indo rumo ao quarto da velha mãe, abriu a porta
que se encontrava semiaberta e se deparou com aquela cena
horripilante, cuja qual jamais esquecera. Os restos mortais da mãe
espalhados pela cama, já não possuía mais forma, nem seus trajes
podiam ser reconhecidos. A velha fora devorada pelos amigos felinos e
posteriormente, já sem alimento, os bichanos cometeram canibalismo,
alimentando-se uns dos outros.
Os
restos mortais da mãe e dos gatos foram enterrados no jardim que ela
cuidara e cultivara a vida toda com amor do mundo. O filho
enlouquecera e fora internado para tratamento psiquiátrico, os
médicos diziam que o linguajar eram miados impossíveis de se
compreender.
Com
o passar do tempo os outros filhos venderam o casarão para uma
família adoradora de gatos, com eles se mudaram 13 felinos.